sexta-feira, 21 de maio de 2010

O homem absurdo tem de esgotar tudo e de se esgotar. O absurdo é a sua tensão mais extrema, a que ele mantém constantemente com um esforço solitário, porque sabe que nessa consciência e nessa revolta do dia-a-dia testemunha a sua única verdade, que é o desafio.

Albert Camus, em O Mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Não tenho telhados de vidro

Vocês, e só vocês, se encarregarão da tarefa de destruir tudo o que construímos.
Na vossa intermitente missão de se crucificarem um ao outro, levar-nos-ão pelo caminho e apodrecerão separadamente em casas enormes e vazias com maçanetas que não funcionam.

domingo, 9 de maio de 2010

Fumar pode provocar uma morte lenta e dolorosa

Caríssimos senhores da hipocrisia vincada,
Parece-me a mim, reles fumadora de 17 anos, que não há ninguém neste mundo que conheça melhor a natureza do Homem do que os senhores. Acham por bem informar os seus fiéis consumidores de que podem morrer de forma lenta e dolorosa, como se não houvessem já razões mais que bastantes neste mundo para se morrer de. Têm vossas excelências por garantido, também, que não existe maior escrúpulo para a Humanidade do que esse objecto desconhecido e implacável que nos torna as vidas limitadas. Morte, oh sim, escrevem-no por todo o lado nesses pacotinhos jeitosos em que vendem o vício, em que criam a besta.
Sabem por certo, as ilustres senhorias, que não há melhor companhia neste vasto mundo que o cigarro. Sabem-no com certeza, se não não se usavam disso como catalisador das vossas máquinas industriais e corruptas de produção de cinismo e falsa integridade. Conhecem assim o ideal do cigarro como marcador do tempo, como separador de momentos e, na melhor das suas concepções, como provocador de conversas. AAh se conhecem...
Foram capazes de criar a ideia da impossibilidade da vida sem tabaco, para mim e mais meio bilião de pessoas que, tal como eu, vivem presos a este vício tão confortável. Pessoas, como eu, incorrigívelmente tímidas ou nervosas que vêem nestes cilindrozinhos putrefactos bons ouvintes, boas companhias e, até, excelentes criadores.
O cigarro é capaz de nos proporcionar aquele à-vontade de quem sabe do que fala, um sítio para colocar as mãos, de caminhar connosco em multidões solitárias. Do acto de fumar um cigarro pressupõe-se toda uma etiqueta funcional extensível a todos os extractos sociais. Acende a classe artista e boémia indubitavelmente fumadora, o primeiro bafo cinematográfico dos aristocratas e chefes de estado, os bafos que se seguem em tom de garantia de um cigarro bem aceso dados pelas putas, pelos vagabundos e pelos homens sem casa, travam vezes sem conta os funcionários públicos, os Senhores do lixo, o papa, o padre, os miúdos da escola, a mãe divorciada, o agricultor, o velho jogador da alameda, o treinador de futebol, o gestor, o nadador profissional, o banqueiro, o presidente da camâra, o emigrante, o imigrante. Os dois últimos bafos dolorosos perto do limite castanho dão-nos os turistas, os pescadores e os taxistas e a beata incandescente deita-a fora a hospedeira apressada pisando-a com o seu salto alto. Buscam as pontas os drogados, os alcoolicos, os pobre, os malucos, a escumulha - afirma a restante sociedade. Agora que penso nisto, será talvez até do vosso considerável interesse, o cigarro seria um excelente camarada vociferante do comunismo. Mas esqueçamos este aparte político, que a vós só vos interessa a economia.
Gostaria assim de pedir-vos, a tom de conclusão, que deixassem estas mensagenzinhas obséquias de lado e tratassem as coisas só pelo nome. É tabaco. Quando compramos todos sabemos o mal deliciosamente aprazível que nos faz, não precisam vossas excelências de ser tão cínicas relativamente ao que produzem.


Grata pela atenção,
A.S.P.

sábado, 8 de maio de 2010

terça-feira, 4 de maio de 2010

Eternamente tu

MEIA PARTE II
Ela tenta Perceber


Se calhar será demais denunciar-te por abuso de poder, duvido demasiado do teu intelecto e do teu discernimento para te achar poderoso.

Cheira-me que a minha origem é agora, para ti, duvidosa - como se a origem fosse moldável.
Que o meu corpo, que tantas vezes te entreguei e não soubeste como aceitar, se transformou num depósito de blasfémias e baboseiras.
Que o meu caractér despropositado, espontâneo, imprevísivel, pueril, racional, inconveniente - que te cativou, enlouqueceu e desatinou como nunca antes ninguém na tua vidinha medíocre havia ousado - se converteu numa coisa da qual se deve ter vergonha. Algo a evitar na tua rotina merdosa do dia-a-dia.
Que os meus interesses e culturas são agora meras afirmações de personalidade, como se precisasse da aceitação ou confirmação de outrem para ser eu própria.

Tu, que tantas vezes me persuadiste com falsos moralismos.
Que tantas vezes me prometeste o mundo.
Que tantas vezes me roubaste o livre arbítrio e o julgamento.
Tu, que me atafulhaste com defeitos e maldades e corrupções inocentes.
Tu, que me cristalizaste como um bibelot de adornar prateleiras
Que me poetizaste como capricho dos teus futuros idealistas e sem rede
Que me envelheceste e me aproximaste da alienação completa
Que me impediste de estabelecer qualquer tipo de relação afectiva, sexual ou intelectual saudável
Tu, que, na pior das tuas conquistas, me fizeste penetrar no teu provincianismo sovina tão tradicionalmente português!

E és agora tu, com as tuas incompatibilidades obscuras e as tuas teorias intrincadas do arco da velha, que tentas recalcar todo este modo de vida; como se tudo isto te fosse perfeitamente anónimo e eu fosse mais um ser inútil nesta realidade cheia de inúteis. E é então que realizo que, pelo teu esforço animal e metafísico de esconder para não acarear, todos os toques, todas as horas, todos os espaços, são agora ocos.















PARTE V
Ele, finalmente, Percebe


O acto de conhecer é inflexível e intolerante;
As pessoas, as relações, os conhecimentos, podem mudar
Mas não se matam os conhecidos.



Grilo de fundo diz: Eles são a prova viva de que viveste, mas já passou.