Apetece-me falar de banalidades. Telefonar-te só para dizer como o tempo da coçadura da micose é agradável, que se amanhã não chover vai estar um rico dia e que a prima da afilhada da irmã da minha mãe se casou. É pena que a minha mãe não tenha irmãs e que as banalidades sejam sempre intransigentes no seu seu carácter inflexível de coisas banais.
Ouvi dizer, por aí, que vais alugar um monte no Alentejo e dedicar-te ao cultivo das coisas comuns, tragando a trivialidade da vida em toda a sua extensão. Concretizas a tua idealização de ter um quintal com galinhas e vacas e porcos e árvores de fruto, muito fruto, tudo para a subsistência perfeita; tudo para a magistral alienação deste mundo perverso, consumista, elitista, redutor, centralista, funesto, reles e malfeito.
Divinizas-te o presente: a vista ao acordar é bonita, o sol entra pela janela sem pedir licença e o mundo corre sempre tranquilo; olhas para o lado e a mulher que é como deve ser ou como convém que seja para a ocasião respira pacificamente na almofada vizinha; os teus seis filhos rompem-te pelo quarto adentro como pulgas com vozinhas e gargalhadas penetrantes de quem acordou às seis da manhã e já correu meio mundo de bicicleta.
Desces, a sala pega com a cozinha e é exactamente como deve ser, sem televisão, com uma manta de retalhos com mais de 50 anos dada pela tua avó no Natal e que se encontra delicadamente abraçada ao sofá cor de vinho desarrumado e puído, com o cão dormindo pacificamente num canto do tapete, a grande estante dos livros, o balcão de madeira da cozinha com pratos todos empilhados um de cada nação, as frigideiras, os tachos, as panelas e os restos de anteriores jantaradas continuam por ali espalhados todos à espera de uma qualquer morada. A mulher desce e, atando atabalhoadamente o roupão de turco, entra na sala. Coloca o cd no leitor e com o seu dedo indicador convida o Louis Armstrong a entrar pela casa, acompanha-la numa dança quase parada e sem ritmo e vão preparando as torradas.... Barram-nas carinhosamente com marmelada e fazem limonada para todos. Pequenalmoçam no terraço e os miúdos vão para a escola.
Tu e a mulher pegam nas bicicletas e passeiam até à pastelaria. Abrem as janelas, vestem os aventais, tomam o café da manhã e as pessoas vão entrando... O negócio vai de vento em poupa, de acordo com o necessário, e as velhas já são até clientes do bolo de chocolate com chilli. O Sr. Ernesto passou só para dizer bom dia, com a expectativa de conversar um bocado sobre a discussão da noite anterior na sociedade recreativa, os restantes transeuntes sentem-se bem naquele lugar e vão circulando por ali experimentando umas novidades para quebrar a rotina da bica e do pão com queijo.